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As transformações do mercado financeiro e os desafios da tributação na economia digital

Tributário

31 de agosto de 2021

Ao longo dos anos, as tecnologias vêm influenciando o comportamento da sociedade, desempenhando um papel de extrema relevância nos mais variados setores. No momento atual, vivemos em um mundo globalmente digital.

Nesse viés, constatamos uma inovação disruptiva no mercado financeiro. Isso porque, esse setor foi responsável por levar ao mercado novidades que transformaram a maneira e a velocidade com que as pessoas se conectam com produtos e serviços.

Diga-se de passagem, poucos anos atrás, era impensável materializar as transações financeiras sem a presença física dos clientes nas agências bancárias. Trata-se de um desenvolvimento que se adaptou rapidamente ao cenário econômico e às novas exigências do mercado, impulsionado pela pandemia do coronavírus (Covid-19), que agilizou uma alteração importante no perfil dos usuários.

Permitimo-nos relembrar que, com base na evolução da sociedade e das relações de consumo, o primeiro sistema de pagamento utilizado foi o escambo (troca) de mercadorias entre indivíduos. Posteriormente, iniciou-se a cunhagem das moedas em metal, criação do papel moeda e a utilização do cheque como forma de pagamento.

Nos anos 50 foi lançado no Brasil o primeiro cartão plástico, da bandeira Diners, após alguns anos de sua utilização nos EUA. No ano de 1968 foi lançado o primeiro cartão de crédito brasileiro – o cartão Elo.

Avançando rapidamente na história, as transações eletrônicas foram popularizadas em meados dos anos 80, com o desenvolvimento do internet banking. Nos anos 2000, o processo de eletronização dos pagamentos trouxe comodidade e segurança para os usuários.

É com essa evolução que o Banco Central do Brasil (Bacen) patrocinou uma série de medidas objetivando o fortalecimento do sistema de pagamentos, sendo que o principal marco legal da reforma foi instituído pela Lei n° 10.214 de 2001, que regula até hoje a atuação das câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação, no âmbito do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB).[1]

Em 2002, o SPB implementou o Sistema de Transferência de Reservas (STR)[2], que possibilitou a transferência de fundos interbancários em tempo real e em caráter irrevogável e incondicional, reduzindo os riscos de liquidação e, consequentemente, o risco sistêmico (risco de que a quebra de um banco provoque a quebra em cadeia de outros bancos).

Posteriormente, em 2009, surgiu a criptomoeda Bitcoin, tecnologia inovadora que foi criada com a ideia de moeda descentralizada, sem intervenção de instituições financeiras, controle do Bacen ou outro órgão regulador. Essa criptomoeda avança em escala global e atingiu seu auge (em reais) em 2020, quando registrou recorde de preço e superou R$ 70 mil após o PayPal anunciar adoção, maior pico da moeda virtual até hoje.[3]

Em meados de 2013, a Lei n° 12.865 trouxe para o Bacen competência sobre arranjos e instituições de pagamento, sendo que algumas passaram a fazer parte do SPB. Essa regulação procurou garantir a segurança e a eficiência do mercado, facilitando as transações financeiras que usam dinheiro eletrônico.

Foi nesse contexto digital que surgiram as fintechs[4], que permitem a realização de operações financeiras, introduzindo inovações de produtos através do uso intenso de tecnologia, com potencial para criar novos modelos de negócios. Em síntese, as fintechs nasceram no mundo virtual e compreendem muito mais do que os denominados “bancos digitais”, são grandes impulsionadoras da transformação dos meios de pagamento, oferecendo serviços digitais inovadores.

Evidente que a Covid-19 desafiou as empresas de tecnologia e o mercado financeiro, levando em consideração a alteração do comportamento de consumo dos indivíduos, acelerando ainda mais a popularização do pagamento por aproximação, visto como uma transação segura por evitar o contato físico.[5]

De acordo com a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), a quantidade mensal de transações por meio dos pagamentos por aproximação passou de 22,6 milhões em janeiro de 2020, para 114 milhões em dezembro do mesmo ano. Ao todo, o pagamento sem contato foi realizado 587 milhões de vezes em 2020, com crescimento de 374% em relação ao ano de 2019.[6]

Como estamos percebendo, as transações financeiras estão cada vez mais céleres, como é o caso do Pix, lançado em Nov/2020. Frisamos, esse pagamento instantâneo brasileiro foi reconhecido pela sua característica inovadora e pelo seu bom desempenho, sendo o vencedor na categoria Payment Innovation, na premiação Fintech & Regtech Global Awards 2021.[7]

Em arremate, com menos de um ano de existência, o Pix já bateu recordes de transações. Em um único dia, em Ago/2021, movimentou R$ 40,4 milhões entre pagamentos e transferências e já é o segundo meio de pagamento mais utilizado pelos brasileiros, perdendo apenas para o dinheiro em espécie.

Outro movimento recente é o chamado “open banking”, que teve sua primeira fase implementada em Fev/2021. Esse sistema permitirá o livre compartilhamento de serviços e dados dos clientes, entre instituições financeiras, por meio de APIs (Aplication Programming Interface ou Interface de Programação de Aplicativos), a partir de diferentes plataformas e não apenas pelo aplicativo ou site do banco, de forma segura, ágil e conveniente. Em termos práticos, o cliente que possuir mais de uma conta bancária ou tiver conta em um banco e empréstimo em outro, poderá visualizar todas as suas informações em um único local.

Incontestável que atualmente as tecnologias assumem um protagonismo ímpar. Em Mar/2021, foram autorizados pelo Bacen os pagamentos por meio de aplicativo de mensagens, em tempo real.[8] Pelo WhatsApp, por exemplo, já é possível iniciar transações entre contas dos clientes nas instituições financeiras em que são correntistas, livres de taxas e totalmente seguras. Para isso, a credencial a ser utilizada no aplicativo é o número do cartão de débito ou pré-pago das bandeiras autorizadas.

Por conseguinte, evidente que as novas ferramentas tecnológicas trazem benefícios, competitividade – cada vez mais veloz – entre as instituições, beneficiando o consumidor final com melhores soluções e tarifas mais vantajosas.

Em sintonia à necessidade constante dos usuários que clamam cada vez mais por meios de pagamentos tecnológicos, práticos e céleres, chegamos aos dias atuais, com o anúncio do “real digital”. O Bacen vem desenhando desde agosto do ano passado um projeto de moeda digital – será um token, uma moeda inteligente – prevendo seu lançamento para meados de 2022. Esse projeto ainda está em fase embrionária e pertencerá a uma nova categoria de moedas.[9] O Bacen avalia que será possível realizar até transações internacionais, mas isso deve demorar a se concretizar, tendo em vista que será necessário adequar e modernizar a legislação cambial que, além de demasiadamente complexa, não acompanhou a evolução tecnológica.

Convém aqui abrirmos um rápido parêntese para esclarecer que a principal diferença entre o (i) real digital e as (ii) criptomoedas está na produção, na medida em que a primeira será emitida pelo Bacen e será entregue aos indivíduos apenas em troca de reais “tradicionais”. Entre outras funcionalidades, os especialistas afirmam que será possível realizar transações modernas com o real digital, como internet das coisas (IoT), contratos inteligentes e dinheiro programável, visando uma maior flexibilidade, melhor adequação e custos mais acessíveis.

Pois bem. Com a oferta de tantos novos produtos e serviços vemos que a tributação das atividades digitais também prospera e se espalha por todo o mundo, inclusive no âmbito dos serviços financeiros, que trilham um caminho de inovação sem volta.

No Brasil, o complexo e acelerado mercado tecnológico enfrenta obstáculos no campo tributário. Isso porque, nosso sistema tributário (CF/88) prevê uma tributação subdividida em três esferas da federação, com conceitos escassos em relação aos negócios atualmente praticados. De fato, a reforma tributária é um dos temas de maior relevância hoje em dia, mas que também encara grandes dificuldades em sair do papel, em virtude do atual cenário político e econômico.

No âmbito internacional não é diferente e a questão também é polêmica. Na era da digitalização, discute-se um novo imposto mínimo global, acordo a nível da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Aqui, um bom embate deve ser a uniformização de opiniões e ideias. Sabemos que hoje o mundo está cada vez mais próximo, mas como instituir um imposto que seja justo e equilibrado a todos os países, sendo que cada um possui sua economia e relação de consumo diferente?

Enquanto isto no Brasil, as novas modalidades de meio de pagamento se encontram em um limbo tributário, sem hipótese de incidência no plano prático, como é o caso do Pix e pagamento via WhatsApp, por exemplo.

De carona com as especulações que envolvem o imposto digital, o Ministro da Economia Paulo Guedes voltou a defender no último mês um novo imposto sobre transações financeiras para compensar outras desonerações, nos moldes da antiga Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). De acordo com as informações aventadas em entrevistas, o Governo planejou nomear este novo tributo como “Imposto sobre Transações Financeiras” (ITF), no intuito de afastar a “má fama” vinculada com a CPMF.[10]

Paulo Guedes justificou a futura proposta de criação do imposto com o argumento de que a tributação não acompanhou a inovação tecnológica. “O imposto digital é uma coisa para nós conversarmos à frente. Mas é claro que a economia é cada vez mais digital. Netflix, Google, todo mundo vem aqui, o brasileiro usa o serviço. São muito bem recebidos, são belíssimas inovações tecnológicas, mas ainda não conseguimos tributar corretamente”, disse.

A ideia do Governo, em princípio, seria desonerar as empresas com a tributação sobre os salários dos empregados, previdência social e INSS, com a contrapartida de tributar as transações digitais. Isto é, cada movimentação digital efetuada pelos usuários teria incidência do ITF, ainda que com uma baixa alíquota (entre 0,1% e 0,2%).

Cabe relembrar que a antiga CPMF também gerou discussões durante a sua vigência (1997-2007), criada em caráter provisório e extinta por não cumprir as suas finalidades ligadas à saúde, que iniciou em 0,2% e chegou a 0,38% sobre o valor das movimentações financeiras, nos termos da Lei n° 9.311 de 1996. Segundo balanço divulgado pela Receita Federal do Brasil (RFB), durante o período de aproximadamente 10 anos, a CPMF arrecadou R$ 223 bilhões. Em 2007, último ano de vigência, a arrecadação atingiu o montante de R$ 37,2 bilhões.[11]

Podemos traçar um comparativo entre o desenho do imposto digital estudado na Europa e a ideia criada no Brasil. De acordo com o Conselho da União Europeia (EU), o imposto digital incidiria sobre as receitas geradas “a partir de atividades em que os utilizadores desempenham um papel importante na criação de valor e que não são abrangidas de forma adequada pelas regras fiscais em vigor”, incluindo neste cenário, receitas oriundas de “vendas de publicidade direcionada”, “de atividades de intermediação digitais que permitem aos utilizadores interagir e facilitam a venda de bens e serviços”, “da venda de dados”, sendo a cobrança de responsabilidade aos países-membros da UE em que os usuários se encontram localizados.

Já o imposto trazido pelo Ministro da Economia segue outra linha, considerando que determinaria a tributação direta sobre transações financeiras realizadas em ambiente digital.

Em outros termos: de um lado tem-se o imposto europeu que objetiva tributar as receitas de empresas que registram ganhos em países da comunidade europeia, mas não geram arrecadação tributária pela falta de uma estrutura tributária moderna e atual que abarque o novo contexto da economia digital; de outro, há a proposta do Governo Brasileiro, que adotaria tributação em cada transação financeira de todas as pessoas, e não somente aquelas da famigerada economia digital, sem considerar, portanto, somente a evolução digital, mas englobando todas as operações.              

Além das críticas baseadas em teoria econômica, especialistas apontam que essa possível exigência poderá gerar uma reação negativa no mercado brasileiro, ocasionando inclusive a desbancarização, com os brasileiros adotando novos planejamentos financeiros e migrando para outras formas de pagamento fora do Sistema Financeiro. Há que se levar em conta, ainda, o efeito prático a longo prazo de possíveis planejamentos tributários a serem adotados pelos usuários, que podem acarretar redução da arrecadação do novo imposto digital e posterior aumento de alíquota com viés compensatório. É um verdadeiro retrocesso.

Aqui cabem algumas reflexões. Em que pesem os métodos de controle e fiscalização dos Fiscos que são, ao que parece, modernizados, o sistema jurídico brasileiro está preparado para acompanhar o acelerado mercado tecnológico? As formas de tributação e seus elementos se ajustaram à realidade do mundo moderno? Quais serão os desdobramentos em termos de “resultado – serviço prestado” de um novo ciclo de guerra fiscal? Como ficaria a divisão de receitas entre os três entes federativos (Municípios, Estados e União) sabendo que as transações flutuam e se disseminam em ambiente totalmente digital?

Se por um lado a criação de um novo tributo significaria dinheiro entrando de forma rápida aos cofres públicos ante ao elevado volume de transações digitais realizadas todos os dias, ainda que com uma baixa alíquota, por outro há o temor de que algumas atividades comerciais sejam punidas de forma desproporcional por se valerem mais de serviços financeiros, podendo onerar, por exemplo, as exportações, em total contrassenso a todos os benefícios concedidos a este seguimento, com o consequente desestimulo do setor.

Não podemos deixar de mencionar que um tributo sobre transações financeiras poderia encarecer o crédito, e que o fato de a contribuição ser cumulativa (aplicada a cada transação realizada) poderia gerar maior incidência na renda dos mais pobres, aumentando cada vez mais a desigualdade no país.

Como se vê, a experiência jurídica nos mostra que o tema “digital” comporta espaço para reflexões e discussões sobre as políticas econômicas, bem como suas repercussões no âmbito do Direito Tributário. É, inclusive, um movimento global que visa atualizar as novas modalidades desenvolvidas no plano tecnológico. No entanto, essa questão arrecadatória é compatível com nosso sistema atual?

Por fim, se o Brasil adotar um modelo individual de tributação de transações digitais como ficaria a situação do país na adoção de um imposto digital a ser criado pela OCDE? Teríamos aqui mais um tipo de bitributação a ser arcada pelos brasileiros?

Ao nosso sentir, criar mais um imposto no Brasil poderia encarecer cada vez mais os preços no país, inviabilizando o acesso igualitário aos novos produtos e serviços tecnológicos. Desonerar a tributação de salários, mas cobrar impostos de transações digitais, ao final, pode não garantir aumento de arrecadação aos cofres públicos, mas elevar, ainda assim, o valor dos tributos pagos pelos contribuintes que, como sabemos, são sempre os reais afetados no âmbito tributário.


[5] A tecnologia utilizada para o pagamento por aproximação é o NFC (Near Field Communication ou comunicação por campo de proximidade), que permite pagamentos sem inserir o cartão na maquininha e sem necessidade de digitação de senha ou até mesmo por aproximação de celular ou smartwatch.

[6] Disponível em: https://noomis.febraban.org.br/temas/meios-de-pagamento/pagamento-por-aproximacao-cresce-374-em-2020-no-brasil.

[7] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/555/noticia.

[8] O Bacen concedeu autorização para o funcionamento de dois arranjos de pagamento instituídos pela Visa do Brasil e pela Mastercard Brasil Soluções de Pagamento e de uma instituição de pagamentos na modalidade Iniciador de Transações de Pagamentos pela Facebook Pagamentos do Brasil, que estão implementando o programa de pagamentos vinculado ao serviço de mensageria instantânea do WhatsApp (Programa Facebook Pay).

[9] Moedas digitais dos bancos centrais, conhecidas pelo termo em inglês Central Bank Digital Currency (CDBC).

[10] Wikipédia. Enciclopédia Livre – CPMF.

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Contribui%C3%A7%C3%A3o_Provis%C3%B3ria_sobre_Movimenta%C3%A7%C3%A3o_Financeira

[11] Senado.

Disponível em:

https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/cpmf



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