ADC 49: Aspectos controvertidos da decisão do STF
15 de julho de 2021
No dia 19 de abril de 2021 o STF julgou improcedente a Ação
Declaratória de Constitucionalidade 49 (ADC 49) que culminou na
declaração de inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no
trecho "ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular", e 13,
§4º, da LC 87/96, trazendo consigo uma alteração sobremaneira quanto a
natureza dessas operações.
Em termos gerais, o decidido na ADC 49
confirmou o entendimento da corte de que o Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços - ICMS não é devido nas transferências de bens e
mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, ainda que
localizados em unidades federativas distintas.
Tal decisão,
embora cercada de apreensão em função de sua natureza, não pode ser
considerada surpreendente. Ainda em 1996, o Superior Tribunal de Justiça
- STJ fixou a súmula 1661 manifestando o seu entendimento no sentido de
que as transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não
constituíam fato gerador do ICMS, enquanto o STF já prestigiava este
entendimento ainda na vigência do DL 406/682, o que foi definitivamente
confirmado quando do julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo
(ARE) 1.255.885-MS, com repercussão geral reconhecida (Tema 1099)3.
Nesse
sentido, e não é exagero afirmar que tamanho são os efeitos da decisão
tomada na ADC 49 que, em termos práticos, não é possível assegurar com
segurança quais são eles. A necessidade de estorno de créditos no estado
de origem, o descompasso entre a repetição do indébito e as glosas de
créditos ou os impactos nas operações sujeitas a substituição
tributária, são temas que logo chamam a atenção, mas não são todos.
Contudo,
tão controversos quanto seus potenciais efeitos, são alguns dos
fundamentos do entendimento do STF, em especial o voto do ministro Edson
Fachin na ADC 49, que foi unanimemente acompanhado pelo demais
ministros.
O primeiro aspecto curioso do acórdão da ADC 49 é a
citação doutrinária utilizada pelo relator para fundamentação de seu
entendimento, que é o livro de Roque Antonio Carrazza dedicado ao ICMS,
no qual o autor afirma que "a circulação de mercadorias apta a
desencadear a tributação por meio de ICMS demanda a existência de uma
operação (negócio jurídico) onerosa, envolvendo um alienante e um
adquirente.", ou seja, "sem mudança de titularidade não falar em
tributação válida por meio do ICMS", entendimento este que afasta a
cobrança do imposto estadual nas simples transferências de mercadorias.
No
entanto, é interessante observar que, na mesma obra, poucas laudas após
o trecho citado no acórdão da ADC 49, Roque Antonio Carrazza abre um
tópico denominado "Exceção à regra geral" em que o autor enfatiza haver
uma importante ressalva em seu entendimento quanto a impossibilidade de
incidência do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo
titular.
Trata-se da hipótese de transferência entre
estabelecimentos localizados em estados distintos, no qual o autor
entende ser cabível a cobrança do ICMS como forma de respeito ao
princípio federativo e do princípio da autonomia distrital que impede
que o estado destinatário seja beneficiado às custas do estado de origem
da mercadoria, que nada arrecadará com a operação de transferência de
mercadorias dirigidas à venda.
"Há, porém, uma exceção a esta
regra: quando a mercadoria é transferida para estabelecimento do próprio
remetente, mas situado no território de uma outra pessoa política
(Estado ou Distrito Federal), nada impede, juridicamente, que a filial
venha a ser considerada "estabelecimento autônomo", para fins de
tributação por via de ICMS. Assim é para que não se prejudique o Estado
(ou o Distrito Federal) de onde sai a mercadoria. Em outras palavras,
cabe ICMS quando a transferência de mercadoria dá-se entre
estabelecimentos da mesma empresa, mas localizados em território de
pessoas políticas diferentes, desde que se destinem à venda e, portanto,
não sejam bens doe ativo imobilizado. A razão disso é simples: a
remessa traz reflexos tributários às pessoas políticas envolvidas no
processo de transferência (a do estabelecimento de origem a do destino).
Ora, aplicando-se a regra geral (de que inexiste circulação na
transferência de mercadorias de um estabelecimento para outro, de um
mesmo proprietário) a pessoa política de origem nada pode arrecadar, a
título de ICMS; só a localizada no estabelecimento de destino."
Assim,
é claro como o STF ignorou o entendimento da doutrina por ele próprio
utilizado na fundamentação de sua decisão, uma vez que não distinguiu as
hipóteses de transferência interna e interestadual, muito embora, mesmo
no primeiro caso também existam impactos tributários relevantes a serem
observados, especialmente relacionados com o ICMS a ser repartido entre
os municípios.
De mais a mais, outro importante aspecto do
entendimento do STF sobre o caso, e não exclusivamente do acórdão da ADC
49, é como o tribunal privilegia a circulação jurídica da mercadoria na
análise das transferências, enquanto nas demais análises atinentes ao
ICMS privilegia a circulação física como fato gerador do imposto.
Para
verificarmos tal constatação, basta analisarmos o entendimento do
Supremo no caso de contribuintes que celebram a venda em um
estabelecimento, porém, realizam a saída física da mercadoria por meio
de outro, como, por exemplo, um centro de distribuição.
Nestas
hipóteses, é de longa data o entendimento, tanto do STF quanto do STJ,
de que a saída física da mercadoria é o elemento caracterizador do fato
gerador do imposto, não havendo que se falar em incidência do ICMS no
local da celebração da circulação jurídica da mercadoria.4
Portanto,
não deixa de chamar a atenção o posicionamento antagônico do STF em
relação a materialidade do ICMS, especialmente considerando as
particularidades que envolvem a operação de transferência, tal como
destacado anteriormente.
Ainda, vale mencionar que a ADC 49
declarou inconstitucional o §3º, II do art. 11 da LC 87/96 que impõe a
autonomia de cada um dos estabelecimentos do mesmo titular, o que,
considerando isoladamente a decisão pela não incidência do ICMS nas
transferências, possui certa razoabilidade.
Contudo, é necessário
ressaltar que a autonomia dos estabelecimentos no âmbito do ICMS possui
efeitos muito mais abrangentes do que a mera verificação da ocorrência
do fato gerador nas saídas, sendo elemento central, por exemplo, para
apuração individualizada do imposto, impossibilidade de comunicação de
créditos e débitos escriturados em estabelecimentos situado em estados
diferente, dentre várias outras implicações.
É possível observar
que a decisão do STF na ADC 49 além de ser bastante controversa, sob a
ótica da estrutura do ICMS como um imposto subnacional sobre o consumo,
também resvala na falta de coerência com a própria doutrina utilizada
para sua fundamentação, bem como, na jurisprudência da corte quanto a
materialidade do imposto estadual.
Vale destacar que, em face do
decidido na ADC 49, o Estado do Rio Grande do Norte opôs Embargos de
Declaração, com efeitos infringentes, no intuito de sanar as omissões
ou, pelo menos, obter a modulação dos efeitos da decisão.
A
partir de então, como forma de alertar para as incertezas e possíveis
distorções trazidas pela decisão do STF, o Comitê Nacional de
Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do
Distrito Federal (COMSEFAZ) enviou o Ofício 185, de 2021 ao Ministro
Relator da ADC 49, Edson Fachin, buscando soluções práticas para as
consequências operacionais da decisão do Supremo. Dentre tais soluções, o
COMSEFAZ pleiteia que a inconstitucionalidade dos citados artigos da LC
87/96 passe a ter efeitos apenas a partir do exercício de 2023, em
função da necessidade de reestruturação das legislações estaduais e das
práticas empresariais.
Neste sentido, cabe acompanhar de perto o
julgamento dos Embargos de Declaração e os seus possíveis desdobramentos
e consequências à sistemática de tributação sobre o consumo no Brasil.
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1-
"Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de
mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte".
2-
"EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO.
IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS - ICMS. ENERGIA
ELÉTRICA. 1. O SIMPLES DESLOCAMENTO DA MERCADORIA DE UM ESTABELECIMENTO
PARA OUTRO DA MESMA EMPRESA, SEM A TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE, NÃO
CARACTERIZA A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ICMS. PRECEDENTES. 2.
CONTROVÉRSIA SOBRE O DIREITO AO CRÉDITO DO VALOR ADICIONADO FISCAL.
IMPOSSIBILIDADE DA ANÁLISE DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL (LEI
COMPLEMENTAR N. 63/1990). OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. 3. AGRAVO
REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.
(Supremo Tribunal Federal.
RE 466526 AgR. Relator: Min. Carmen Lúcia. Órgão Julgador: Segunda
Turma. Data de julgamento: 18/09/2012. Data de publicação: 04/10/2012).
3-
Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para
outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não
haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de
mercancia.
4- "Tributário. I.C.M.. Mercadorias vendidas a
consumidores situados num Estado, porém oriundas de outro Estado, onde
foram faturadas e emitidas as notas fiscais, e de onde saíram
diretamente para o consumidor. Incidência de tributo no Estado de onde
se deu a transmissão da propriedade e de onde saiu diretamente para o
consumidor.
Decisão que não vulnerou o art. 23, inci. II, da
Constituição, nem tampouco o art. 3° do Dec.-lei n° 406/68, e art.2 97,
III, 10, 113, § 1°, 127, III, e 159 do Código Tributário Nacional.
Dissídio jurisprudencial não comprovado. Recurso extraordinário não
conhecido". (Supremo Tribunal Federal. RE 95.981-5/MG. Relator: Min.
Djacil Falcão. Órgão Julgador: Segunda Turma. Data de julgamento:
12/11/1982. Data de publicação: 05/12/1982).
"1. A definição do
fato gerador corresponde a situação definida em lei (art. 97, iii, e
114, CTN), na compra e venda, sintonizando a nota fiscal (expressão da
"tradição") o local da saída para a entrega ao consumidor final,
espelhando o envolvimento de ato mercantil. (...) 4. Enfim, o ICM tem
como local de incidência o estado-membro, onde foi emitida a nota
fiscal, como expressão da transmissão da propriedade e de onde saiu a
mercadoria diretamente para o consumidor. 5. Precedentes
jurisprudenciais. 6. Recurso provido".
(Superior Tribunal de
Justiça. REsp: 34137 MG 1993/0010299-0. Relator: Min. Milton Luiz
Pereira. Órgão Julgador: Primeira Turma. Data de julgamento: 21/06/1993.
Data de publicação: 23/081993)