Reflexões e desdobramentos da decisão do STF que declarou inconstitucional o CPOM de São Paulo
11 de junho de 2021
A implementação de procedimentos específicos (obrigação acessória de
cadastramento de empresas prestadoras de serviços situadas fora do
Município) deve estar em consonância com as diretrizes impostas no
próprio texto constitucional, não sendo possível exigir tributo com
fundamento de validade nas normas infraconstitucionais.
Em junho de 2021 foi finalizada - em definitivo - a discussão. O que muda com o fim da exigência do CPOM?
Desde
a edição da LC 116/2003 tem-se, como regra geral, que o Imposto sobre
Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) deve ser recolhido no município em
que está localizado o estabelecimento do prestador dos serviços, nos
termos do artigo 3°.
Como é sabido, em 2005, foi publicada a lei
14.042/20051, que instituiu o Cadastro de Empresas de Fora do Município
(CPOM) na cidade de São Paulo. Com a implementação desta regra,
prestadores de serviços localizados fora do município paulistano, que
prestam serviços específicos2 para tomadores situados na capital
paulista, devem aderir ao CPOM para que não sofram a retenção na fonte
do ISSQN. Do contrário, o profissional pode incorrer em bitributação,
uma vez que tem que recolher o imposto no município em que está sediado,
bem como na cidade em que efetivamente prestou o serviço.
Nesse
contexto, cabe observar que foram estabelecidos diversos procedimentos
para análise e tramitação do pedido de inscrição (CPOM), o que originou
práticas lentas para restituição3 dos valores retidos de prestadores
estabelecidos fora do Município de São Paulo quando do preenchimento da
totalidade dos requisitos e, por conseguinte, da efetivação do cadastro.
É
neste pano de fundo que, com o passar dos anos, obrigações similares a
essa foram implantadas por diversas prefeituras no país, muitas vezes
com outra denominação. É o caso, por exemplo, da Declaração de Serviços
Recebidos (DSR), em Niterói (RJ); do Cadastro de Empresas Prestadoras de
Outros Municípios (CEPOM), no Rio de Janeiro (RJ) e do Registro
Auxiliar de Nota Fiscal de Serviço (RANFS), em Feira de Santana (BA),
dentre outros. Exigências que, à toda evidência, merecem críticas.
De
acordo com as justificativas dos municípios, a inscrição está baseada
na possibilidade de identificar pessoas jurídicas que simulam seu
estabelecimento em outra localidade, representando um mecanismo
antifraude, inclusive no combate à guerra fiscal. No entanto, com o
passar do tempo, evidente que o CPOM representou uma alternativa dos
municípios para trazer a receita do imposto para si, quando não eram
competentes para tanto. Acontece que, a mera presunção não é capaz de
instaurar a relação jurídica tributária para exigência de imposto.
Ainda,
sem qualquer pretensão de exaurir todas as peculiaridades e discussões
que envolvem a matéria, nos termos do artigo 146, inciso III, da CF/88,
cabe à lei complementar estabelecer normas gerais no âmbito do direito
tributário, principalmente sobre definição de tributos e suas espécies,
obrigação, lançamento e crédito.
Neste sentido, com fundamento no
artigo 113 do Código Tributário Nacional (CTN - lei 5.172 de 1966), a
obrigação tributária divide-se em: (i) principal e (ii) acessória. Em
suma, a obrigação principal tem por escopo obter recursos financeiros
através do pagamento de tributos, sendo que a obrigação acessória não
possuiu caráter econômico, deriva da legislação tributária e tem por
finalidade as prestações - positivas ou negativas - em favor do
interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos.
Portanto,
importante registrar que a implementação de procedimentos específicos
(obrigação acessória de cadastramento de empresas prestadoras de
serviços situadas fora do Município) deve estar em consonância com as
diretrizes impostas no próprio texto constitucional, não sendo possível
exigir tributo com fundamento de validade nas normas
infraconstitucionais. Isso porque, esses procedimentos não representam
instrumentos hábeis para estabelecer o fato jurídico da exação. Aceitar a
validade da extensão do aspecto espacial do ISSQN implica reconhecer
uma extraterritorialidade da lei do imposto.
No mais, no âmbito
tributário, além do princípio da legalidade, é imprescindível para a
implementação das obrigações acessórias a observância dos princípios da
isonomia, da ordem econômica (livre concorrência e livre iniciativa), da
eficiência (minimização de custos), da praticabilidade, da
razoabilidade, da proporcionalidade, da capacidade de colaboração e da
supremacia do interesse público sobre o particular.
Isto posto,
o que se indaga ao longo dos anos é, qual é a adequação, necessidade e
proporcionalidade do CPOM? Note-se que direitos dessa estatura não podem
ter seu exercício tolhido, uma vez que tais diretrizes têm por
finalidade básica a proteção contra intervenções estatais desnecessárias
ou excessivas por parte das autoridades competentes, que causem aos
contribuintes danos mais graves que o inevitável.
Nos parece,
inclusive, que tal exigência se reveste de caráter punitivo, uma vez que
estes municípios cobram o imposto de prestadores de serviços que sequer
estão situados nesta cidade, mas que deixam de cumprir mero cadastro.
Feitas
essas considerações, interessante observar que a LC 175/2020, que
definiu novas regras sobre o local de incidência do imposto - ISSQN
devido no local em que se situa o tomador dos planos de saúde e
medicina; administração e gestão de fundos e clubes de investimento;
administração de cartão de crédito ou débito e congêneres; administração
de carteira de valores mobiliários; e arrendamento mercantil (leasing) -
vedou expressamente a exigência de cadastros municipais em relação aos
contribuintes não estabelecidos no território do tomador, gerando novos
argumentos na defesa dos contribuintes eventualmente prejudicados.
Muito
embora as legislações municipais apresentem similitudes, o que se
propõe neste artigo é suscitar a discussão a respeito dos dados e fatos
inerentes ao CPOM instituído pela Prefeitura de São Paulo, por meio da
lei 13.701/2003 (com alterações introduzidas pela lei 14.042/2005) e os
desdobramentos no Supremo Tribunal Federal (STF).
Pois bem.
Muitos prestadores de serviços insatisfeitos com tal exigência optaram
em discutir judicialmente a legalidade e constitucionalidade da
imposição de uma obrigação acessória em Município diferente do local em
que está situado. O assunto tomou grandes proporções e foi tema de
repercussão geral no RE 1.167.509/SP4, submetido ao plenário do STF em
sessão virtual de julgamento encerrada em fevereiro de 2021.
Em
síntese, o STF, por maioria, deu razão às alegações dos contribuintes ao
declarar que é incompatível com a Constituição Federal disposição
normativa que prevê a obrigatoriedade de cadastro, em órgão da
Administração municipal, de prestadores de serviços não estabelecidos no
território do município, impondo-se ao tomador o recolhimento do ISSQN
quando descumprida tal obrigação.
Segundo bem explanado pelo
relator do caso, ministro Marco Aurélio, não cabe aos municípios a
instituição de obrigações acessórias destinadas a contribuintes que não
integram a relação jurídico-tributária. Não obstante, asseverou que a
legislação em questão afronta prescrições de natureza constitucional,
usurpando competência tributária de outrem.
Ainda assim, mesmo
após prolação da decisão favorável pelo STF, os contribuintes
paulistanos permaneceram com dúvidas e incertezas sobre o procedimento a
seguir, tendo em vista que a Secretaria Municipal da Fazenda de São
Paulo publicou, em meados de abril de 2021, nota de esclarecimento5
informando que o CPOM "ainda está em vigor e produzindo todos os seus
efeitos jurídicos, inclusive quanto à obrigatoriedade de seu
preenchimento e quanto aos efeitos jurídicos e tributários da respectiva
omissão em fazê-lo."
À época da publicação da nota de
esclarecimento pelo Município de São Paulo, aguardava-se, ainda, o
julgamento dos Embargos de Declaração opostos pela Administração
Fazendária, os quais tiveram provimento negado pelo STF em 5.6.2021.
Oportuno
destacar que, com base nos dados apresentados pelo Município de São
Paulo, atualmente, há 177.285 contribuintes com cadastro ativo no CPOM,
sendo que, no exercício de 2020, "o montante retido pelos tomadores de
serviço foi de R$ 234 milhões". Levando em consideração o período de 5
(cinco) anos, a Prefeitura de São Paulo assevera que, com o acórdão
embargado, o impacto financeiro negativo em suas contas pode superar R$ 1
bilhão de reais. A perda estimada de arrecadação de ISSQN por ano é de
aproximadamente de R$ 120 a R$ 288 milhões.
Diante do exposto,
resta claro que, independente da perda estimada, conclui-se que essa
problemática deveria ter sido encerrada definitivamente em 05.06.2021,
com o trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF. No entanto, a
insegurança jurídica despertada nos contribuintes ainda é latente.
Se
por um lado, com o trânsito em julgado do RE 1.167.509/SP, em tese não
restam mais dúvidas a respeito da inconstitucionalidade da obrigação de
os prestadores de serviços estabelecidos fora do município se
cadastrarem na Prefeitura de São Paulo, há certeza quanto à dificuldade
do cumprimento da norma pela capital paulista e seus possíveis
desdobramentos jurídicos.
Nesse contexto, cabe trazer algumas reflexões.
Após
a publicação da decisão pelo STF (fev/21), os tomadores de serviços se
viram em uma grande encruzilhada, pois imediatamente diversos
prestadores situados em outros municípios passaram a solicitar o
pagamento pelo serviço sem a retenção na fonte do ISSQN, haja vista a
declaração de inconstitucionalidade de referida cobrança, contudo, a
Prefeitura de São Paulo seguia exigindo o cumprimento de seus normativos
legais, como demonstrado pela nota de esclarecimento publicada em
19.4.2021.
É de se preocupar que, mesmo após o trânsito em
julgado, o Município de São Paulo mantenha tal exigência, ferindo
princípios basilares dos contribuintes. E o mais grave: se os tomadores
de serviços deixarem de exigir o CPOM de prestadores estabelecidos fora
do município paulistano, poderá a Prefeitura autuá-lo impondo multas
punitivas? Ao revés, se os tomadores de serviços continuarem exigindo o
CPOM, a contragosto do que determinou o STF, caberá medida judicial a
ser ajuizada pelos prestadores de serviços contra a retenção indevida do
ISS? Qual é o impacto desses desdobramentos nas relações
jurídicas/comerciais e na manutenção das atividades dessas pessoas
jurídicas?
Esse ponto é de extrema relevância pois, não é a
primeira vez que o contribuinte tem êxito em tema tão importante,
contudo, enfrenta dificuldade para implementar seus direitos carimbados
pela Carta Magna.
Nesta linha de raciocínio, merece igual
destaque a reflexão sobre a possibilidade de os contribuintes pleitearem
junto ao Município a restituição dos valores indevidamente recolhidos
ao longo dos anos.
Isso porque, como não houve modulação dos
efeitos da decisão do STF, ou seja, a sua aplicabilidade não se
restringiu a eficácia temporal em controle difuso de
constitucionalidade, de modo a terem efeitos exclusivamente para o
futuro (prospectivos), dá oportunidade para que contribuintes
prejudicados solicitem a restituição de valores pagos a maior nos
últimos 5 (cinco) anos.
Há de se pontuar que, dificilmente a
restituição se dará por via administrativa, de modo que os contribuintes
que se sentirem lesados poderão ajuizar a medida judicial cabível.
Com
a decisão, o STF delimita as regras de discriminação de competências
tributárias. No entanto, uma vez que o objeto da análise teve por
fundamento a lei paulista, aos contribuintes, resta aguardar o
posicionamento das demais localidades sobre a matéria, no âmbito dos
5.568 municípios brasileiros. Nesse diapasão, o fim da guerra fiscal
travada entre os municípios permanece muito longe do fim, considerando
que ainda há diferença de tratamento aplicado nas legislações de cada
cidade.
O tema, como se vê, certamente comporta novas reflexões
e desdobramentos. Em síntese, dúvidas não há que, quando os
contribuintes se sagram vencedores nas disputas judiciais com a
finalidade de reaver os valores recolhidos indevidamente, começam a se
preparar para as novas batalhas, até mesmo pela morosidade na
internacionalização das decisões e dos diversos empecilhos criados pelos
Fiscos na tentativa de prolongar os efeitos financeiros.
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1
Introduz modificações no artigo 9° e acrescenta o artigo 9°-A à lei
13.701/2003, que altera a legislação do Imposto sobre Serviços de
Qualquer Natureza (ISSQN) em São Paulo.
2 Serviços elencados no artigo 69 do decreto 53.151/2012.
3 Portaria SF 060/2006.
4
Tema 1020 - Controvérsia alusiva à constitucionalidade de lei municipal
a determinar retenção do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza -
ISS - pelo tomador de serviço, em razão da ausência de cadastro, na
Secretaria de Finanças de São Paulo, do prestador não estabelecido no
território do referido Município.
5 Esclarecimento sobre vigência do Cadastro de Prestadores de Outros Municípios (CPOM). Publicado em 19/4/2021. Disponível aqui.
Fonte: Migalhas