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Revolução das SAFs e novos mecanismos de capitalização no futebol

Jonathan S. Mazon / Corporate Law

16 de julho de 2024

Por Jonathan Mazon e Fernando Freitas

A popularidade do futebol no Brasil é incomparável. Esta paixão é evidente não apenas na quantidade de jogadores amadores e profissionais, mas também na enorme audiência que acompanha os jogos pela televisão e pela internet. Porém, o futebol no Brasil não é apenas um esporte, é também uma poderosa indústria que movimenta bilhões de reais anualmente. Clubes de futebol, patrocinadores, emissoras de televisão, empresas de marketing esportivo e uma infinidade de pequenas e médias empresas se beneficiam da popularidade do esporte.

Apesar de ser uma indústria gigante, é comum vermos notícias que relatam o endividamento dos clubes, sejam eles grandes, médios ou pequenos. Em 2023, segundo levantamento da Sports Value, a soma das dívidas dos 20 clubes que mais faturam no país foi de R$ 8,9 bilhões.

Como forma de amenizar as dívidas, os clubes têm investido cada vez mais em mecanismos de capitalização, com destaque para tokens com mecanismo de solidariedade e Fidc’s, além da criação das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).

O grande propulsor que fez com que a indústria do futebol adentrasse o mercado de capitais ocorreu em 2021, com a criação da Lei nº 14.193/21, que instituiu a SAF. Pouco depois, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou o Parecer de Orientação CVM 41/2023, tratando das normas aplicáveis às SAFs que desejassem acessar o mercado de capitais.

Os clubes brasileiros têm dívidas históricas e de longa data, e as SAFs são uma saída, na medida em que trazem no rol de suas preocupações normas de governança, fiscalização, boas práticas, e tutela dos direitos dos acionistas.

A Lei das SAF permite que os clubes de futebol sejam transformados em sociedades anônimas, estabelecendo normas especiais de governança corporativa, tratamento fiscal diferenciado e criação de novos mecanismos de financiamento da atividade futebolística.

Possibilidades

Há três possibilidades previstas na Lei das SAF para a transformação dos clubes. A SAF poderá ter origem de um clube já existente, transformando a associação civil sem fins lucrativos em uma sociedade anônima. Também poderá haver a cisão do departamento de futebol, dando origem a uma SAF, de forma que o clube original continue com suas outras atividades e a sociedade siga com futebol masculino e feminino. Por fim, poderá a SAF ser criada originalmente por uma pessoa física ou pessoa jurídica ou fundo de investimento, ou seja, o surgimento de um clube que não existia anteriormente.

Nas duas primeiras hipóteses, a SAF sucede compulsoriamente o clube de futebol nas relações com as entidades de administração, bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol. Já a terceira hipótese é entendida como uma alternativa de criação de uma sociedade totalmente nova, independentemente da existência de associação ou pessoa jurídica anterior.

Além disso, é importante destacar que, para ocorrer a transformação dos clubes em SAF com segurança e sucesso, é necessário um cuidado especial com a governança. Entre outros, o estatuto social deve ser ajustado à Lei, bem como deve obrigatoriamente haver o registro da transformação/conversão na Junta Comercial do Estado em que está localizada a sede da SAF.

Trata-se de mudanças relevantes, considerando que, atualmente, ainda há muitos clubes de futebol que se encontram estruturados como associações civis, sem fins lucrativos. Especificamente no que diz respeito à captação de recursos, a Lei das SAFs criou a possibilidade da emissão de títulos de dívida, denominado “Debênture-fut”.

Títulos de dívida

Os títulos somente podem ser emitidas por SAFs e deverão possuir, entre outras, as seguintes características: remuneração por taxa de juros não inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança, permitida a estipulação, cumulativa, de remuneração variável, vinculada ou referenciada às atividades ou ativos da SAF; prazo de vencimento igual ou superior a dois anos; vedação à recompra da Debênture-fut pela SAF ou por parte a ela relacionada e à liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela CVM; bem como a ocorrência de pagamentos periódicos de rendimentos.

É importante destacar que as Debêntures-fut são similares e seguem a mesma estrutura jurídica-financeira que as debêntures reguladas pela Lei das S.A., devendo também ser observadas as previsões dispostas nas Resoluções CVM nº 77 e nº 81. Duas das diferenças entre as Debêntures-fut e as debêntures reguladas pela Lei das S.A. são:

(i) As debêntures reguladas pela lei das S.A. não  possuem prazo mínimo de vencimento, devendo este ser acordado na escritura de emissão, conforme dispõe o caput do art. 55 da Lei das S.A., enquanto as Debêntures-fut devem possuir prazo igual ou superior a 2 anos; e

(ii) as debêntures reguladas pela Lei das S.A. permitem a  possibilidade de resgate antecipado e de aquisição pela própria companhia que as emitiu, ao passo que as Debêntures-fut possuem vedação à recompra pela SAF ou por parte a ela relacionada, bem como à liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento.

Só futebol

É importante destacar que a Lei das SAFs prevê expressamente que os recursos captados por meio da emissão das Debêntures-fut deverão ser utilizados em prol das atividades futebolísticas dos clubes ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas a elas relacionados, nos termos previstos na Lei e nos estatutos sociais dos clubes.

A CVM, em seu Parecer de Orientação 41, firmou entendimento para que as SAFs possam emitir oferta de debêntures sem a necessidade de serem registradas na autarquia, desde que a oferta seja destinada exclusivamente a investidores profissionais, ou seja, destinada àqueles investidores que possuem mais de R$10 milhões investidos e atestados por declaração própria ou que possuam certificação técnica emitida pela CVM.

Além da possibilidade da Debênture-fut e, conforme anteriormente mencionado, os clubes também têm a possibilidade de se financiar por meio da emissão de tokens com mecanismo de solidariedade. Para entendermos melhor este sistema, é importante definirmos o significado de “mecanismo de solidariedade”.

O mecanismo foi criado para ser uma recompensa aos clubes por terem formado profissionalmente um jogador ao longo dos anos iniciais de sua carreira. É uma espécie de “retorno” por tudo que o clube fez pelo atleta durante sua formação, visto que a cada transferência internacional do jogador, o clube formador do atleta tem direito de reter para si até 5% dos valores envolvidos na negociação. No Brasil, a Lei nº 9615/98 (Lei Pelé) assegura o mesmo valor às transferências nacionais.

Ao comprar este tipo de token, o investidor retém o direito de receber parte proporcional dos recebíveis do clube provenientes do mecanismo de solidariedade pelo período definido na oferta.

Em termos operacionais, a emissão e comercialização dos tokens não difere de outras operações envolvendo ativos financeiros: o detentor do ativo (time de futebol) contrata um prestador de serviços para estruturar a operação e emitir os títulos, os quais serão distribuídos ao público por valor unitário inicial pré-determinado pelo emissor. Posteriormente, esses títulos poderão ser negociados em mercados secundários, controlados pelo próprio emissor, sujeitando-se às variações e flutuações naturais de qualquer mercado.

Grandes clubes já investem neste mecanismo, incluindo o Cruzeiro (CRZ0) e o Coritiba (CFC0), os quais já captaram mais de R$ 2 milhões cada um. Outros times, como Vasco (SAF) e Santos, também são adeptos à iniciativa. O produto, inclusive, já gerou bons frutos aos seus detentores. Os tokens negociados no Mercado Bitcoin, Vasco Token e Token da Vila (do Santos FC), já distribuíram R$ 3,59 milhões e R$ 10,85 milhões, respectivamente, em rendimentos, até maio de 2024.

Uma vantagem adicional de se investir nestes ativos é a possibilidade de diversificar a carteira, além do fato de que muitas das transferências de atletas ocorrem em moedas mais valorizadas do que o real, como o dólar e o euro. A valorização dessas moedas também participa da remuneração ao investidor. Entretanto, com uma decisão de 2020 [1], a CVM consolidou seu entendimento no sentido de que os tokens atrelados ao mecanismo de solidariedade não são valores mobiliários, visto que não preenchem a totalidade dos critérios que compõem o chamado “Howey Test” [2].

O “Howey Test” é um enquadramento legal que utiliza de quatro critérios para determinar se uma operação se qualifica como um contrato de investimento: (i) para haver o investimento no ativo, deve haver a necessidade de aplicação de recursos financeiros, seja dinheiro ou outro bem suscetível de avaliação econômica; (ii) o ativo consiste em um empreendimento coletivo, que envolve a participação de terceiros; (iii) expectativas de lucro; e (iv) o sucesso do ativo depende de esforços de terceiros, normalmente, pelo trabalho dos gestores.

Assim, a não caracterização dos tokens baseados no mecanismo de solidariedade da Fifa como valores mobiliários, cria um vácuo regulatório que possibilita a estruturação deste tipo de operação sem óbices normativos relevantes. Por outro lado, a incidência do Decreto nº 11.563/2023 sobre os tokens dispõe que todo e qualquer criptoativo que não seja considerado valor mobiliário pela CVM será de exclusiva responsabilidade regulatória do Banco Central. O BC, por sua vez, não possui, até o momento, qualquer regulamentação a este respeito.

Direito creditório

Outra alternativa para os clubes que visam captar recursos são os fundos de investimento em direito creditório. Os Fidcs podem ser usados por qualquer clube de futebol, mesmo aqueles que não tenham virado SAF, para antecipar o recebimento de valores futuros, investindo em recebíveis relacionados ao futebol, como direitos de transmissão (pay-per-view ou outros), vendas de ingressos de estádio e taxas de associação, sendo estruturado de forma a permitir que os clubes de futebol monetizassem esses recebíveis antecipadamente.

O Fidc seria constituído como um veículo de investimento que adquire esses direitos creditórios dos clubes, proporcionando-lhes liquidez imediata. Os clubes de futebol venderiam seus recebíveis futuros ao fundo, que, por sua vez, emitiria cotas para investidores interessados em participar do fundo. Esses investidores receberiam retornos baseados nos fluxos de caixa gerados pelos recebíveis adquiridos. A estrutura do Fidc incluiria mecanismos de avaliação e gestão de risco para assegurar a qualidade dos recebíveis e a capacidade de pagamento dos devedores.

Dessa forma, os clubes de futebol poderiam transformar receitas futuras em capital presente, permitindo investimentos imediatos em infraestrutura, contratação de jogadores ou outras necessidades operacionais, enquanto os investidores do Fidc se beneficiariam dos retornos gerados pelos recebíveis do futebol.

O Fidc é uma excelente opção porque pode ser usado por clubes em qualquer fase, para antecipar praticamente qualquer tipo de receita, representando uma potencial redução do seu custo de captação em relação às alternativas mais tradicionais, como o financiamento bancário. Já para o público investidor, este pode ser um investimento com uma rentabilidade potencialmente maior em relação às opções mais usuais, como os títulos de renda fixa tradicionais.

O São Paulo Futebol Clube é um exemplo de clube que obteve retorno positivo neste segmento. Segundo o CEO da Ouro Preto Investimentos, João Baptista Peixoto Neto, gestor do Fidc do São Paulo, um fundo com garantia no contrato de pay-per-view com a TV Globo e com vencimento em março de 2023, alega que o Fidc previa uma captação de R$ 37 milhões, oferecendo uma rentabilidade de 160% do CDI. A captação estimada foi de R$ 40 milhões.

A SAF do Cruzeiro seguiu essa tendência de investimento, com a criação do Fidc Zorro. O fundo emitiu cotas subordinadas júnior de série única e captou o montante de R$ 3 milhões em fevereiro deste ano.

Passado o momento inicial de constituição das SAFs e, diante das mudanças trazidas com a Lei nº 14.193/21 e da crescente procura dos clubes para captar recursos no mercado de capitais, já é possível considerar aberturas de capital em Bolsa, prática comum no exterior, mas que somente devem ocorrer no Brasil após uma maior consolidação da legislação e maturidade do mercado como um todo.

Além das questões de segurança e previsibilidade jurídica, os investidores vão querer, certamente, anos de balanços e contas bem estruturados e auditados, bem como prognósticos de receitas mais confiáveis, gestões transparentes, compliance e governança corporativa.

Alguns clubes ainda estão no processo de virarem sociedades anônima, alguns já foram objetos de venda, como aconteceu recentemente com o Cruzeiro, mas o certo é que será necessário tempo e uma boa gestão das SAFs para viabilizar uma caminhada à Bolsa de Valores. De qualquer forma, as expectativas são boas!

 

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Bibliografia:

Você compraria dívida do seu clube do coração? Debêntures de futebol vêm aí; conheça

https://capitalaberto.com.br/temas/captacao-de-recursos/como-a-industria-do-futebol-se-capitaliza-rumo-a-bolsa/?utm_campaign=destaque_do_dia_0705_base_geral&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

https://inteligenciafinanceira.com.br/onde-investir/investimentos/mercado-de-capitais-cvm-e-o-futebol/

https://www.azevedosette.com.br/noticias/pt/a-emissao-de-debentures-fut-e-a-capitalizacao-das-safs/6740

https://leiemcampo.com.br/a-cvm-e-os-tokens-de-mecanismo-de-solidariedade/

https://www.liqi.com.br/categoria/tokens-esportivos

 

Entendendo o Howey Test: será que ele se aplica aos criptoativos?

[1] Ofício nº 15/2020/CVM/SER

 [2] Conjunto de critérios utilizados pela Securities Exchange Commission, a CVM dos Estados Unidos, especificamente para este tipo de avaliação.

Publicado no ConJur.

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