Navegando entre fronteiras legais: a polêmica Súmula 161 do Carf
Pedro Ernesto de Albuquerque / Tax Law
12 de julho de 2024
Pedro Albuquerque e Maria Morais
Nas últimas décadas, o direito aduaneiro tem experimentado uma crescente tendência de cooperação e uniformização entre os países, sobretudo diante da globalização, com o objetivo de reduzir barreiras comerciais e aumentar a eficiência nas operações de importação e exportação, além da própria segurança jurídica.
Na contramão desses esforços, em 2019, sobreveio a publicação da Súmula nº 161 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), aprovada em conjunto com outras 33 súmulas em sessão extraordinária, a qual introduziu uma penalidade especialmente peculiar para erros de classificação de mercadorias na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), a saber:
“O erro de indicação, na Declaração de Importação, da classificação da mercadoria na Nomenclatura Comum do Mercosul, por si só, enseja a aplicação da multa de 1%, prevista no art. 84, I da MP nº 2.158-35, de 2001, ainda que órgão julgador conclua que a classificação indicada no lançamento de ofício seria igualmente incorreta.”
Em resumo, imputa-se ao contribuinte o dever de classificar a mercadoria adequadamente, não podendo errar esse complexo procedimento aduaneiro, sob pena de incorrer em penalidade de 1% sobre o valor aduaneiro, que está prevista no artigo 84, inciso I, da Medida Provisória nº 2.158 de 2001. E, mesmo que incorreta a classificação diversa adotada pela própria autoridade fiscal, o Carf editou a Súmula 161 para confirmar que a multa também será devida da mesma forma.
Como sabido, a Súmula é um instituto jurídico cujo substrato básico é a consolidação de entendimentos pacificados sobre determinada matéria. Não por outra razão, o regimento interno do Carf estabelece que as decisões reiteradas e uniformes serão consubstanciadas em súmula de observância obrigatória pelos membros do Conselho, que podem, até, perder o mandato em caso de desrespeito (1).
Ocorre que, ainda na época da edição da Súmula nº 161, a maioria dos acórdãos que embasaram o referido enunciado normativo foram decididos, exclusivamente, por desempate do voto de qualidade do conselheiro presidente (isto é, dos cinco acórdãos adotados, três deles foram resolvidos por voto de minerva, quais sejam: Acórdãos nºs 9303-006.331, 9303-006.474 e 9303-008.194) (2).
Há que se ressaltar, desde já, que as decisões resolvidas com voto de qualidade não equivalem como reiteradas ou uniformes.
Neste passo, a edição da Súmula nº 161 do Carf interrompeu de maneira artificial os debates e as discussões que ainda estavam em estágio de amadurecimento. (3)
Em uma análise mais aprofundada, os referidos acórdãos lançaram mão do argumento de que o erro na classificação fiscal adotada pelo contribuinte exigiria que todo o procedimento fiscal fosse revisto e que a necessidade desse novo lançamento, portanto, autorizaria a aplicação da multa. Noutro giro, também foi suscitado nos acórdãos paradigmas que tal erro de codificação prejudicaria a elaboração de políticas fiscais justas para a pauta de produtos fiscais importados e, ao mesmo tempo, fragilizaria a proteção da indústria nacional. (4)
Política fiscal prejudicada
Muito embora não se refute que tais prejuízos possam ser verdadeiros, fato é que os procedimentos teriam que ser revistos e a política fiscal nacional restaria prejudicada de igual modo, independentemente da conduta do contribuinte, pois, nas hipóteses de aplicação da Súmula nº 161, a classificação adotada pelo Fisco também estaria equivocada.
Ao arrepio dos princípios basilares do direito, a referida súmula não só consolida entendimentos jurisprudenciais controversos, como também peca ao legitimar autuações duvidosas e sem qualquer respaldo no princípio da legalidade.
Isto porque o artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN) estabelece que o lançamento do crédito tributário é ato administrativo vinculado e obrigatório, bem como que a descrição correta dos fatos correspondentes à infração capitulada é a real condição de validade para as penalidades impostas ao contribuinte.
Em outras palavras, não pode ser discricionário o ato do lançamento do crédito tributário, sendo dever da autoridade fiscal agir em conformidade com a legislação tributária pertinente para fazer a correta subsunção do fato à hipótese normativa. O que certamente não é o que ocorre no caso de erro de classificação fiscal por parte do Fisco quando do lançamento de ofício da multa.
Dessa forma, além de ilegal, revela-se desproporcional e irrazoável a manutenção da referida multa, em âmbito administrativo, de 1% sobre o valor aduaneiro da mercadoria no caso de classificação incorreta, com base na Súmula nº 161 do Carf, ou seja, com base também em erro de classificação da própria Administração. (5)
Ainda, a manutenção da multa com base na Súmula nº 161 do Carf contraria o princípio do “in dubio pro contribuinte”, consagrado no artigo 112 do CTN, segundo o qual, em caso de dúvidas, a interpretação deve ocorrer da forma mais favorável ao contribuinte.
Nesse mesmo sentido, vale citar as interessantes soluções definidas pela Colenda 3ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no julgamento dos Processos de nºs 5055225-13.2021.4.02.5101 (6) e 5078865-79.2020.4.02.5101 (7). No julgamento da apelação interposta nos autos do Processo nº 5055225-13.2021.4.02.5101 em específico, a multa de 1% imposta ao contribuinte foi considerada indevida, justamente, em razão do desacerto da reclassificação fiscal efetuada pela própria Secretaria da Receita Federal. Outro motivo adotado foi a existência de pareceres de classificação do Comitê do Sistema Harmonizado da Organização Mundial das Alfândegas (OMA) que não foram observados pela autoridade fiscal.
Assim, para a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região tanto o erro da classificação fiscal adotada pelo própria Fisco, quanto a desconsideração das orientações da OMA, possuem o condão de afastar a liquidez e certeza das CDAs impugnadas, requisitos esses exigidos pelo artigo 3º da Lei de Execuções Fiscais (LEF – Lei nº 6.830 de 1980) e pelo artigo 204 do CTN
Não é só. No julgamento do Processo de nº 5078865-79.2020.4.02.5101, tendo em vista a existência de dúvida quanto à classificação mais adequada, a mesma 3ª Turma houve por bem aplicar o artigo 112 do CTN em prol do contribuinte.
Direito de defesa do contribuinte
A nosso ver, parece acertado o entendimento consolidado nas decisões judiciais citadas, na medida que estará eivada de vícios qualquer cobrança baseada em erro por parte da autoridade tributária.
Neste contexto, não é exagero afirmar que a ausência de fundamentação para uma classificação fiscal adequada viola o princípio da legalidade e o direito de defesa do contribuinte, pois os atos da administração pública, como visto, devem ser pautados estritamente por previsão legal.
As chances do contribuinte de afastar a penalidade pecuniária no âmbito do poder judicial, apesar de promissoras, ainda não resolvem o problema da insegurança jurídica que circunda a matéria. Afinal, embora existam precedentes contrários ao conteúdo da Súmula nº 161, as decisões tomadas em controle difuso no âmbito judicial notadamente não vinculam o Carf e tampouco existirá discussão judicial sobre a súmula em si.
Deste modo, o contribuinte, impedido discutir a incidência da multa na via administrativa por ocasião da aplicação Súmula nº 161, tem de recorrer ao Poder Judiciário, muitas vezes lançando mão de garantias dispendiosas, para ver satisfeito o seu direito de não se submeter a penalidades baseadas também em equívocos interpretativos por parte da autoridade fiscal.
Para o contribuinte, até pode parecer uma luz no fim do túnel a recente criação da Câmara Aduaneira Especializada no Carf (8), que promete conceder um tratamento mais justo às revisões aduaneiras e às empresas que atuam no comércio exterior. A Câmara será composta por duas turmas e julgará os casos envolvendo a tributação em operações de importação, multas substitutivas de pena e regulamentações antidumping, sendo uma ótima oportunidade da referida Súmula nº 161 ser revista, especialmente em vista dos acórdãos paradigmas terem se resolvido por parte de qualidade.
Sem dúvidas, trata-se um importante avanço para garantir maior segurança jurídica para o setor responsável por 2/3 da alta de 2,9% do PIB em 2023. (9)
(1) No âmbito do CARF, tal sanção está prevista no art. 85, inciso VI do seu Regimento Interno.
(2) Acórdãos da Câmara Superior nºs 9303-006.331 (21/2/2018) e nº 9303-008.194, (21/2/2019), ambos de relatoria do conselheiro Demes Brito e nº 9303-006.474 (14/3/2018), de relatoria do conselheiro Andrada Márcio Canuto Natal.
(3) Subscrevemos o posicionamento expresso por Diego Diniz, em seu artigo publicado em 5 de outubro 2022 no ConJur: https://www.conjur.com.br/2022-out-05/direto-carf-multa-erro-classificacao-fiscal-sumula-carf-161#_ftn13.
(4) Processo nº 10715.002642/2004-82. Recurso Voluntário. Acórdão nº 9303-008.194 – Câmara Superior de Recursos Fiscais – 3ª Turma. Sessão de 21 de fevereiro de 2019. Matéria Classificação Fiscal. Recorrente: Fazenda Nacional. Recorrida CLARIANT S/A.
(5) É também o posicionamento externado por Analise Castor de Mattos em seu artigo publicado em 10 de outubro de 2022 no ConJur: https://www.conjur.com.br/2022-out-10/analice-castor-mattos-ilegalidade-sumula-161-carf/
(6) Acórdão de Apelação nº 5055225-13.2021.4.02.5101. Disponível em: https://juris.trf2.jus.br/documento.php?uuid=e8ac0cdd10f85ecc22c24ebf74303724&options=%23page%3D1
(7) Acórdão de Apelação nº 5078865-79.2020.4.02.5101. Disponível em: https://juris.trf2.jus.br/documento.php?uuid=27b9026769341f4b1fa7bbb6bb4b553d&options=%23page%3D1
(8) Vide Portaria CARF nº 627, de 18 de abril de 2024.
(9) PIB cresce 2,9% em 2023 e fecha o ano em R$ 10,9 trilhões. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/39303-pib-cresce-2-9-em-2023-e-fecha-o-ano-em-r-10-9-trilhoes
Publicado no ConJur.