Programa de conformidade cooperativa fiscal: um avanço da Receita Federal
28 de dezembro de 2023
Por Claudia Cristina dos Santos Abrosio e Rafael Pescuma Rodrigues da Silva
O atual cenário
político no Brasil é marcado por intensos debates em torno de mudanças
tributárias. O ano de 2023 está sendo notado por diversas alterações na
legislação e propostas para o futuro.
Nesse contexto,
sabemos que além de uma tributação justa, o contribuinte anseia por algo a
mais: a implementação de normas que consolidem os direitos e as garantias do
contribuinte, fundadas em um modelo de confiança e colaboração, gerando
cooperação recíproca (entre o Fisco e contribuinte).
Na Câmara dos
Deputados, temos alguns projetos de lei complementar (PLP) que propõem
instituir o Código de Defesa do Contribuinte na legislação brasileira, que, se
aprovados, contribuirão para o atingimento da segurança jurídica, assegurando
direitos decorrentes das expectativas de confiança legítima na criação ou
aplicação das normas tributárias, além do diálogo e ganhos mútuos.
A conformidade
cooperativa vem sendo recomendada pela Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) há anos. Nesse ponto, percebemos que programas
de transparência, aperfeiçoamento na atuação da administração tributária e
conformidade cooperativa fiscal são, de fato, uma tendência internacional [1].
De acordo com a
OCDE, os pilares fundamentais para a criação de uma relação melhor entre contribuintes
e administração tributária são: entendimento baseado no conhecimento da
realidade empresarial; abertura e transparência; igualdade e imparcialidade;
proporcionalidade; e responsividade [2].
No Brasil, o
Projeto Confia, criado em 2020 pela Receita Federal, busca estabelecer um novo
paradigma de relacionamento entre o Fisco e os contribuintes, criando um
ambiente de confiança, transparente e colaborativo, no auxílio da promoção da
conformidade fiscal das empresas, para, com isso, diminuir gradativamente o
número de autuações.
Esse é um
processo de mudança de mentalidade e de comportamento de ambas as partes, que
será operacionalizado em etapas. Nessa circunstância, a administração
tributária pode e deve se relacionar da maneira mais eficaz, aumentando a
eficiência do sistema tributário e melhorando a alocação de recursos públicos.
Em novembro de
2022, esse projeto foi apresentado na reunião dos chefes das autoridades
fiscais dos países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul,
países em desenvolvimento). Nessa oportunidade, o intuito foi discutir a
cooperação das autoridades tributárias do Brics, enfatizando o tema de promover
a parceria de alta qualidade, inaugurando uma nova era para o desenvolvimento
global [3].
Assim, com a
publicação da recente Portaria RFB n° 387 (DOU de 14/12/2023), foi instituído e
regulamentado o funcionamento da fase piloto do programa (Confia Piloto),
construindo a visão institucional de uma administração tributária voltada à
conformidade e à orientação ao contribuinte.
O “Confia
Piloto” foi criado para expandir as atividades do programa Confia, procurando o
cumprimento do roteiro desenhado pela Receita e o início da fase de testes. Por
isso, a portaria estende o prazo para a realização do teste de procedimentos do
programa, que terminaria em 2023, estando prorrogado para 30 de abril de 2024.
Nessa nova
fase, os principais objetivos se concentram em aperfeiçoar o relacionamento e
os processos de trabalho em formato cooperativo, com fundamento na
transparência e na confiança mútua, entre a Receita e os maiores contribuintes
selecionados.
No piloto
Confia, entre outras disposições, estão aptos a se candidatarem apenas os
contribuintes que, integralmente: estejam sujeitos ao acompanhamento especial
da Receita, desde que tenham declarado no ano-calendário de 2022 uma receita
bruta maior ou igual a R$ 2 bilhões e débito total mínimo de R$ 100 milhões;
estejam propícios à conformidade tributária, mediante avaliação da Receita;
cumpram os requisitos de regularidade fiscal; submetam-se à auditoria na CVM
(Comissão de Valores Mobiliários); e concordem com as cláusulas constantes de
termos de adesão.
Para o ingresso
ao programa, existem algumas etapas que devem ser seguidas no processo de
adesão: a autoavaliação, em que o contribuinte deverá verificar a adequação das
suas políticas e procedimentos aos requisitos de admissibilidade definidos na
Portaria RFB nº 387/2023; candidatura, mediante envio da documentação pré-definida;
elaboração de plano de trabalho e conformidade, em que o contribuinte, em
conjunto com a Receita, definirá os temas de interesse tributário a serem
trabalhados; e certificação, concedida ao contribuinte que for aprovado na
validação e que possuir plano de trabalho de conformidade ratificado, nos
termos do artigo 4° da Portaria RFB n° 387/2023.
De uma forma
geral, a finalidade do programa é criar um modo de solução de consulta
personalizada, em que o Fisco poderá opinar previamente às operações e
planejamentos apresentados pelas empresas e, com isso, garantir uma redução ao
número de autuações e à lacuna entre a arrecadação potencial e real de
tributos. O foco não está nos debates sobre diferentes teses jurídicas, mas em
evitar entendimentos unilaterais sobre decisões judiciais que implicam as
operações feitas pela companhia. Resumindo, o intuito é trazer segurança
jurídica e simplificação ao sistema.
Sabemos que o
contexto tributário e o ambiente de negócios no Brasil sofrem com a incerteza
sobre o pagamento de tributos. De acordo com um relatório do Insper publicado
em 2020 [4], o Brasil possui R$ 5,4 trilhões em disputas entre a Receita e os
contribuintes (contencioso administrativo e judicial). Além disso, o tempo
gasto no cumprimento de obrigações acessórias, no Brasil, alcança o montante
aproximado de 1.500 horas por ano, valor significativamente maior ao da média
mundial de 233 horas, de acordo com o Banco Mundial [5].
Nesse contexto,
o “Confia Piloto” surge com foco no presente e no futuro para restaurar a
relação entre o Fisco e os contribuintes que, atualmente, está marcada por
conflitos. Muito provavelmente, a implementação do programa não representará
uma solução completa e imediata ao atual volume de litígios no Brasil, mas será
um mecanismo de suma importância, que colaborará para garantir uma maior
segurança jurídica ao contribuinte e estimular o desenvolvimento da capacidade
operacional da Receita.
[1] Em set/23,
foi publicado o informativo “Tax Administration” da OCDE, citando dois projetos
da Cidadania Fiscal da RFB, ambos selecionados para acompanhamento por parte da
organização, a saber: (i) Indicador de Percepção e (ii) Cidadania Fiscal RFB
como extensão universitária (Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2023/outubro/ocde-cita-a-cidadania-fiscal-da-receita-federal-no-relatorio-tax-administration-2023.
Acesso em: 18 dez. 2023).
[2] Noções
gerais: Conformidade Cooperativa Fiscal. Referências internacionais: Reino
Unido, EUA, Austrália, Portugal, Espanha e França. (Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/confia/outros-materiais-confia/copy_of_CartilhaConformidadeCooperativaversofinalaprovada.pdf.
Acesso em: 18 dez. 2023).
[3] Disponível
em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/confia/receita-apresenta-o-programa-confia-na-reuniao-dos-paises-do-brics.
Acesso em: 18 dez. 2023.
[4] Disponível
em: https://www.insper.edu.br/noticias/disputas-sobre-tributos-equivalem-a-57-da-receita-de-multinacionais-no-brasil/#:~:text=Disputas%20sobre%20tributos%20equivalem%20a%2057%25%20da%20receita%20de%20multinacionais%20no%20Brasil,-20%2F06%2F2022&text=O%20contencioso%20administrativo%20e%20judicial,publicado%20pelo%20Insper%20em%202020.
Acesso em: 18 dez. 2023.
[5] Disponível
em: https://subnational.doingbusiness.org/content/dam/doingBusiness/media/Fact-Sheets/SubNational/DB2021_SNDB_Brazil_Factsheet_Portuguese.pdf.
Acesso em: 18 dez. 2023.
Claudia
Abrosio é advogada
tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados, mestre em Direito
Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto
Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Rafael Pescuma Rodrigues da Silva é estagiário tributarista no escritório Ayres Ribeiro e graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Publicado no ConJur