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Cerveja briga com cachaça, açúcar busca isenção, e bicicleta pode ser taxada: entenda a confusão em torno do ‘imposto do pecado’

Tributário

06 de outubro de 2023

Por Juliana Causin 

Deixar de fora combustíveis fósseis e bebidas açucaradas e incluir bicicletas. Da forma como foi aprovado na Câmara, e diante de mudanças que podem vir no Senado, o Imposto Seletivo (IS), previsto na Reforma Tributária, pode acabar gerando distorções na tributação para algumas indústrias e salvaguardas para outras.

O tributo, está previsto na PEC 45, aprovada pelos deputados e que unifica impostos federais e estaduais nos futuros em outros dois novos impostos (IBS e CBS).

Depois da discussão para zerar a alíquota de imposto da cesta básica, na tramitação da Reforma Tributária, o imposto passou a ser o novo foco dos lobbies no Congresso. E mesmo entre as empresas que pressionam para amenizar o impacto do novo imposto há divergências, como no setor de bebidas. Por isso é apelidado de "imposto do pecado".

Desestimular bens e serviços com externalidades negativas, que provocam danos à saúde e ao meio ambiente, é o principal objetivo do IS, que já existe no nosso sistema tributário atual para cigarros e bebidas alcoólicas. Mas o texto aprovado pelos deputados acabou indo além dos objetivos originais do tributo. Uma emenda que visa a garantir os benefícios da Zona Franca de Manaus vai acabar atingindo, por exemplo, as bicicletas

O Imposto Seletivo aparece na PEC como um tributo de caráter extrafiscal, de competência da União, e voltado para "produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente". A alíquota e incidência serão definidas por meio de lei complementar.

Na indústria de álcool, fabricantes de cerveja e cachaça estão em lados opostos. De um lado, os destilados esperam que o imposto tenha a mesma alíquota para todo o tipo de bebida e alegam que "álcool é álcool". Do outro, cervejarias defendem que o "imposto do pecado" tenha uma gradação de alíquota que varie de acordo com o teor alcoólico do produto.

Grupos de pressão se movimentam inclusive para ficar fora do IS. Representantes da indústria de petróleo e gás propõem uma emenda para que itens considerados essenciais, caso dos combustíveis, não sejam sobretaxados. Para a indústria de alimentos, o objetivo é garantir a manutenção de um trecho aprovado na Câmara que resguarda o setor.

Insegurança jurídica para bikes

O Imposto Seletivo irá se somar ao IBS e ao CBS, que unificam tributos federais e estaduais, com objetivo de atingir "bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente", segundo a proposta. Chamado em outros países de Sin Tax ("imposto do pecado", em português), seu propósito é extrafiscal: trata-se de um mecanismo para onerar atividades ou bens que têm custo social, como o álcool e cigarro.

Apesar de não terem as características de gerarem malefícios à saúde ou ao meio ambiente, produtos alheios à proposta original do Imposto Seletivo podem acabar taxados por causa da mudança feita na Câmara para proteger a Zona Franca de Manaus, no artigo 92.

A mudança feita na Câmara para proteger a Zona Franca de Manaus indica que o Imposto Seletivo pode alcançar “produção, comercialização ou importação” em outras regiões de bens que também são produzidos no local.

No caso das bicicletas, o Imposto Seletivo vai onerar em 82% da produção nacional, segundo a Aliança Bike, associação do setor, com 407 indústrias e montadoras no Brasil.

Para Henrique Perlatto Moura, tributarista do escritório Ayres Ribeiro Advogados, o artigo gera insegurança jurídica, já que todos os produtos industrializados na Zona Franca terão um imposto correlato para as demais regiões do país. Ele diz que “todos serão tributados” para que a ZFM não seja. Poderiam entrar bicicletas, eletrodomésticos, celulares e televisões, entre outros.

— Bicicleta não se enquadra no que seria objetivo original do imposto e, ao mesmo tempo, a produção está majoritariamente espalhada pelo país, com só quatro fabricantes no polo de Manaus — diz Daniel Guth, diretor executivo da Aliança Bike. -- Existem duas grandes injustiças aí.

'Má solução', diz consultor

Em setembro, o setor lançou uma campanha alertando bicicletas teriam o mesmo imposto que "álcool e bebidas". Da forma que está, o IS pode atingir tanto bikes quanto tabaco, segundo tributaristas. Mas a alíquota não necessariamente seria a mesma -- algo que só seria definido após aprovação da PEC no Congresso.

Eduardo Fleury, advogado, economista e consultor do Banco Mundial lembra que o objetivo original do tributo é corrigir as externalidades negativas de determinados bens. Com isso, o preço final refletiria o real custo que aquele produto traz para sociedade e governo. Para ele, a inclusão da questão da Zona Franca no tributo é "uma má solução, que cria uma porção de problemas".

No caso de indústrias que estão concentradas na ZFM, a saída encontrada por governo e Congresso para manter os benefícios do polo industrial vai ser benéfica. As motocicletas, por exemplo, concentram 98% da produção no polo manauara, segundo a Abraciclo. De acordo com a Eletros, que representa fabricantes de eletrodomésticos, 100% da produção nacional de ar-condicionado, televisores, lavadoras de louça e microondas está na Zona Franca.

Para a Confederação Nacional da Indústria, o mecanismo é importante para compensar o fim do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) que, no sistema atual, beneficia a produção no polo industrial. A entidade espera que o trecho seja mantido na redação do Senado.

— Esse foi um arranjo possível para acabar com o IPI, um imposto com diversos problemas e que é suportado pela indústria e o comércio. Diversos setores industriais que hoje tem incidência do IPI e não têm produção na Zona Franca já pagam mais. O objetivo é manter a neutralidade — diz Mário Sérgio Telles, gerente-executivo de Economia da CNI.

Combustíveis fósseis fora

Assim como no caso do IBS e CBS, a alíquota do Seletivo será definida via lei complementar. A redação do texto constitucional, no entanto, vai delinear o nível de abrangência do imposto. Enquanto, pela redação atual, as bikes podem entrar, os produtores de combustíveis fósseis tentam emplacar uma emenda que, na prática, garanta que eles fiquem fora do IS.

Representantes do setor de petróleo e gás argumentam que a Reforma Tributária não mexe com mecanismos que vão continuar onerando o setor. Eles citam a CIDE-combustíveis, da União, e o RenovaBio, programa que não tem caráter tributário, mas exige contribuição financeira de empresas da cadeia para a descarbonização.

A proposta do setor para uma emenda para tirar os combustíveis fósseis do IS já está pronta. O objetivo é incluir no texto da PEC a garantia de que o tributo seletivo não pode incidir sobre bens considerados essenciais, como explica Valéria Amoroso Lima, diretora de Downstream do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP):

— Nós tivemos a aprovação da Lei 194, de 2022, que define o que é essencial, incluindo energia elétrica e os combustíveis. Nós achamos que é importante deixar isso claro. Nossa proposta de emenda tenta endereçar esses temas — diz Lima, que questiona também como será a incidência do Seletivo e o risco do tributo gerar cumulatividade na cadeia.

Juliano Bueno de Araújo, diretor técnico do Observatório do Petróleo e Gás e do Instituto Internacional Arayara, discorda da visão de que o setor seja suficientemente onerado e lembra da existência de mecanismos de subsídios que historicamente vêm estimulando a indústria de fósseis.

— É preciso modificar as facilidades econômicas que a indústria de petróleo de gás teve ao longo das décadas e precisamos, sim, cobrar desse segmento a conta da sua responsabilidade das mudanças climáticas, das quais o país se insere — diz Araújo.

Incerteza sobre refrigerantes

Para organizações da sociedade civil, o Imposto Seletivo deveria avançar também sobre a indústria de alimentos, incluindo ultraprocessados e bebidas açucaradas. Alíquotas maiores para refrigerante, por exemplo, são adotadas em 85 países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Lá fora, o imposto é chamado de Sugar Tax ("Imposto do Açúcar", em português).

No Brasil, uma brecha no texto da PEC pode incluir salvaguardas para essa indústria. Durante a tramitação, um dispositivo trouxe que itens com alíquota reduzida, o que inclui “alimentos para consumo humano”, devem ficar de fora do Imposto Seletivo. A lista de produtos nessa categoria é abrangente e, em tese, poderia incluir até os refrigerantes. Mas os fabricantes resistem.

Para os representantes da indústria, nenhum produto da categoria deveria entrar no Imposto Seletivo. João Dornellas, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), defende que a redação que saiu na Câmara deveria ser mantida. A indústria também questiona o quanto o imposto é efetivo para desestimular consumo:

— Sempre que falam de países que adotaram (o sugar tax) seria necessário mostrar o resultado de longo prazo. O que nós defendemos não é esse ou aquele alimento, mas que todo o alimento chegue mais barato na mesa do brasileiro. Nós torcemos e trabalhamos para que o Senado tenha o mesmo entendimento que a Câmara.

Alíquotas maiores para desincentivar o consumo de determinados bens têm se provado em todo mundo uma política de saúde eficaz, defende Marília Sobral Albiero, coordenadora de Inovação e Estratégia da ACT Promoção da Saúde. A organização defende que, no Brasil, o imposto de renda incida sobre alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas, o que pode não acontecer.

— Será necessário um olhar vigilante da sociedade civil na regulamentação. Não faz sentido um produto totalmente supérfluo como as bebidas açucaradas, que causam mal à saúde e ao meio ambiente, e que já terão parte de seus benefícios preservados com o regime fiscal da Zona Franca de Manaus, ainda terem uma alíquota reduzida — avalia Marília, que defende uma mudança na redação da PEC para que produtos que sejam alvo do seletivo não recebam benefícios fiscais.

Como deve ser o Imposto Seletivo

No sistema atual, a sobretaxa para produtos com externalidades negativas acontece principalmente por meio de alíquotas maiores do IPI, de competência federal - o cigarro, por exemplo, tem uma alíquota de 300% aplicada sobre 15% do preço de venda a varejo. Para o ICMS, há variações de estado para estado.

A reforma tributária vai unificar em dois tributos, com o IVA dual, os impostos federais e estaduais, sob uma alíquota padrão. Diferente do IBS e CBS, a ideia é que não gere crédito, já que o objetivo é fazer com que o produto fique mais caro. Em outros países que adotam o IVA, o Imposto Seletivo costuma incidir em um determinado elo da cadeia de produção, geralmente o fabricante.

Eduardo Fleury diz que um dos pontos de preocupação para o setor privado é de que o imposto se estenda para além de uma gama restrita de produtos para qual faria sentido o imposto incidir. Renata Emery, sócia do TozziniFreire Advogados, alerta que a abrangência, na PEC, poderia fazer com que o IS se torne um instrumento arrecadatório.

— Falar só externalidade negativa é muito amplo. A formulação ideal seria limitar a determinadas indústrias e elencar taxativamente quem se pretende alcançar. A partir do momento que o texto é tão amplo, eu dou o poder para o legislador para mudanças ao sabor do momento político ou de situação econômica.

Publicado em O Globo.

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