Marco Túlio Cícero: O primeiro dos tributaristas
05 de abril de 2021
Marco Túlio Cícero (106 a.C. - 43 a.C.) foi um grande nome de sua época; uma figura respeitável que viveu e marcou as últimas décadas da esplendorosa República de Roma, para a qual dedicou – e até mesmo sacrificou - a sua vida.
Como filósofo, foi um erudito estudioso da filosofia grega - chegou a estudar na escola de Ptolomeu -, um expoente da escola do estoicismo romano e um jusnaturalista nato, legando à humanidade verdadeiros tratados sobre Política, Direito, Ética e Moral.1
Como estadista, há relatos históricos de que exerceu com Justiça e presteza os cargos públicos mais honoráveis existentes à época: de Edil Curul, Questor, Pretor, Senador, até a posição de Cônsul (cargo político mais elevado na antiga República de Roma).
Aliás, de seu trato com a res publica, restou eternizado um fundamental ensinamento no que diz respeito à necessidade de responsabilidade fiscal na administração das finanças do Estado: "O orçamento deve ser equilibrado, o Tesouro Público deve ser reposto, a dívida pública deve ser reduzida, a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada e controlada, e a ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado".2
Também foi um orador notável. Com a sua oratória, salvou Roma de ser invadida e incendiada pela conspiração arquitetada por Lúcio Sérgio Catilina, a quem denunciou ao Senado por crime de lesa-pátria. Estas denúncias se deram por meio de uma série de discursos, proferidos heroicamente em Roma. As Catilinárias ressoam até hoje, como uma verdadeira aula de retórica, firmeza e elegância no discurso.
Veja que estes são apenas alguns dos grandes feitos realizados por Cícero em sua vida. Mas é certo que, como advogado foi o melhor que Roma já teve – pelo menos, foi o mais notável. Seu amor pelo Direito pode ser percebido em sua afirmação de que "o poder e a Lei não são sinônimos. Muitas vezes são opostos irreconciliáveis."3
Sua vivência como jovem advogado é bem retratada pela escritora Taylor Caldwell em seu livro "Um Pilar de Ferro", que contém um verdadeiro dossiê histórico sobre a vida de Cícero. Referida obra é fruto de anos de pesquisas em museus e bibliotecas, em Roma e na Grécia4, de sorte que nela, em determinada passagem, a autora consegue nos trazer a história do primeiro caso em que o então jovem Cícero advogou.
Segundo narrado na referida obra, o mestre de Cícero no Direito foi o famoso advogado e pontífice máximo Quinto Múcio Cévola, respeitado jurisconsulto romano. Este mestre delegou ao seu discípulo uma prova de fogo: sustentar o seu primeiro caso, perante o Senado de Roma, em defesa de um humilde lavrador chamado Pérsio, que em meio às dificuldades financeiras não tinha conseguido honrar com seus impostos e, diante disso, teve sua propriedade confiscada pelo Estado para quitar a dívida.
O caso era ainda mais grave. É que, pela Lei das XII Tábuas, como os bens não eram o bastante para saldar a dívida, Pérsio e sua família (sua mulher e seus dois filhos) também seriam apropriados pelo Estado, e vendidos como escravos. Era o primeiro processo de Cícero. Um processo tributário, do qual, em última análise dependia a dignidade e a liberdade de seres humanos.
Ciente da injustiça que estaria ali a se perpetrar, Cícero declarou perante o Senado a inocência de seu cliente quanto a todas as acusações. Logo, foi questionado por um dos senadores: "inocente e de um crime comprovado?!" – já que o inadimplemento era de fato incontestável.
Mas, conforme é contado, com toda a sua retórica, eloquência e lógica, Cícero demonstrou que seu cliente não havia violado o espírito daquela lei.
Primeiramente, rememorou que se tratava de uma legislação bem antiga, quase que em desuso, e que, quando fora promulgada, tivera como objetivo impedir que o povo da então recém-nascida República de Roma agisse de forma perdulária. Segundo sustentou, o télos daquela lei era incentivar o respeito dos cidadãos pelas responsabilidades tributárias para com o Estado. Também ponderou que o peso daquela Lei não servia apenas para advertir ao cidadão romano, mas também se destinava aos governos que pudessem se mostrar esbanjadores.
Sobre isso, asseverou que os impostos eram sim necessários para a sobrevivência de Roma, mas ressalvou que a finalidade dos impostos deveria ser o bem-estar do povo romano.
Ocorre que, conforme Cícero passou a denunciar, já havia muito tempo que os impostos não estavam sendo vertidos para o bem-estar do povo romano, pois estavam sendo esbanjados com medidas populistas e desnecessárias, e com um assistencialismo exacerbado destinado às "pátrias amigas", conquistadas por Roma.
Assim, conforme se sucede na narrativa de Caldwell, Cícero em um discurso veemente e muito bem concatenado - carregado de cargas axiológicas - demonstrou que as circunstâncias originárias (de austeridade e transparência nas finanças públicas) sobre as quais a lei impugnada havia sido editada não mais estavam presentes na sociedade romana, por culpa do próprio Estado e de seus governantes irresponsáveis.
Assim sendo, a conclusão era de que as penas de tal lei (editada com base em premissas fáticas e axiológicas muito diversas daquelas presentes) não poderiam ser imputadas à um pobre cidadão romano, acometido pela miséria. Afinal, não era fundamento do Direito Romano que o governo não podia ser mais que o povo?5
A denúncia daquela injustiça foi tão contundente e tão constrangedora para o Senado, que o próprio Cônsul ali presente recomendou a absolvição do acusado. O Senado acatou a resolução e a Justiça prevaleceu no caso concreto.
Quando, nos dias de hoje, analisamos a situação aqui narrada - aos olhos das mais modernas Teorias Gerais Direito -, podemos dizer que ali tratou-se de um exemplo de derrotabilidade daquela lei tributária específica6, cuja inaplicabilidade ao caso concreto foi sustentada pela defesa de Cícero.
Mas, de tudo que foi narrado, o mais interessante a se notar é a hermenêutica teleológica que foi pugnada por Cícero. Dela é possível perceber o seu famoso viés para o Direito Natural, que o marcou no campo da Filosofia do Direito. Suas ideias se fundam exatamente na noção de que existe uma Lei Natural, superior à lei dos homens; e que as leis humanas só são leis na medida em que derivam da Lei Natural, divina.7
E esta Lei Natural não é compatível com injustiças e iniquidades, tais quais as que iriam ser perpetradas em desfavor de Pérsio e sua família, se não fosse a intervenção de Cícero.
Encerremos, então, esta bela passagem da história de Marco Túlio Cícero – na qual a dignidade humana se sagrou vencedora em um processo tributário na Roma antiga - com uma sábia lição professada pelo nobre advogado, lavrada com pena de ouro em seu livro "Os Deveres": "Summum ius, summa iniuria" (na suma lei, reside a suma injustiça – algo no sentido de que, a aplicação rigorosa e fria da Lei pode muitas vezes resultar em iniquidades).8
Por isso, a busca por Justiça no caso concreto (como medida de Equidade) jamais deve cessar. E que esta passagem das épocas longínquas de advocacia do nobre Marco Túlio Cícero sirva de inspiração para os tributaristas dos dias de hoje, na hercúlea missão de fazer prevalecer a Justiça da Tributação.
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1 Apenas para mencionar as suas mais famosas obras, do vasto acervo deixou à prosperidade: em matéria de filosofia moral, concebeu a célebre obra "Os Deveres" ("De Officiis"). Sobre Direito, escreveu "Das Leis" ("De Legibus"). Sobre Política, publicou a memorável "Sobre a República" ("De Republica").
2 CALDWELL, Taylor. Um Pilar de Ferro. 4ª Ed. Tradução: Luiza Machado da Costa. 2004.
3 CALDWELL, Taylor. Um Pilar de Ferro. 4ª Ed. Tradução: Luiza Machado da Costa. 2004.
4 Conforme própria nota da autora ao final de sua obra: "Embora centenas de livros, ensaios, manuscritos e outros textos tenham sido estudados antes e durante a elaboração deste livro, especialmente em Roma e Atenas, basta mencionar alguns por aqui. A Bíblia Sagrada, especialmente os Salmos de Davi e as profecias do Messias (devido ao interesse de Cícero pelo assunto) e as cartas entre Cícero e Ático (Biblioteca do Vaticano, Arquivos e traduzidas por mim no local), e as Orações de Cícero, especialmente Pro Sex, Roscio, De Império Cn. Pompeim Pro Cluventio, In Catilinam, Pro Murena, Pro Caelio,, disponíveis integralmente em latim e extratos em inglês, cartas de Cícero à família e amigos (centenas de fontes, demais para serem citadas), obras do próprio Cícero, muitas citadas neste livro, e seu Legibus e De Republica, Salústio, traduzidos por J.C. Rolfe, a Política Aristóteles, as peças de Aristófanes, Ésquilo, Sófocles a Ilíada e a Odisseia de Homero, Cícero (Obras Seletas), traduzido por Michael Grant, A Unidade Essencial de Todas as Religiões, Bhagavan Das, Ética de Aristóteles, Livro Base da Filosofia Antiga, por Charles M. Bakewell, a Enciclopédia Católica, Fedo, de Platão, Cícero e a República Romana, por F.R. Cowell, o Mundo de Roma, por Michael Grant, Obras Básicas de Cícero, traduzidas por Moses Hadas (especialmente recomendadas), Vidas, de Plutarco, Júlio César, por W. Wade Fowler, César, por J.A. Froude, As Metamorfoses de Ovídio, traduzido por Mary M. Innes, Vida de Cícero, por Willian Forsyth, e os Romanos, por R.H. Barrow."
5 CALDWELL, Taylor. Um Pilar de Ferro. 4ª Ed. Tradução: Luiza Machado da Costa. 2004.
6 Segundo a moderna teoria da derrotabilidade, é possível que, no caso concreto, a aplicação de determinada lei seja afastada, em virtude de circunstâncias que sejam verificadas e que justifiquem a derrota/superação da norma em prol da equidade – que é exatamente a Justiça do caso concreto. Sobre isso: HART. H. L. A. The Ascription Of Responsibility And Rights. Acesso aqui.
7 LEITE, Flamarion Tavares. Manual de Filosofia Geral e Jurídica. Editora Forense. Rio de Janeiro. 2006. P.50.
8 CÍCERO, Marco Túlio. Os Deveres. Editora Escala. Tradução: Luiz Feracine. P. 59