Mensagens indicam que Americanas pediu tempo a agências de rating antes de ser rebaixada
Jonathan S. Mazon / Corporate Law
16 de agosto de 2024
Mensagens de WhatsApp trocadas por executivos da Americanas poucos dias após o anúncio de um escândalo contábil pela varejista em 11 de janeiro de 2023 indicam uma tentativa da empresa de ganhar tempo e endurecer o diálogo com agências de classificação de risco. Isso no momento em que a companhia começava a encarar a onda de downgrades em suas notas de crédito.
Em meio às mensagens anexadas ao recente parecer do Ministério Público para a busca e apreensão, aparece um grupo de WhatsApp formado por executivos da área financeira da empresa. No grupo, eles falam das reuniões realizadas com as agências de rating e de como teriam de abordá-las diante da expectativa de um rebaixamento em série naquele momento de turbulência.
Em uma delas, no dia 13 de janeiro, Fabiana Oliver, que atua como diretora de Relações com Investidores da varejista até hoje, relata o resultado de uma destas reuniões.
"S&P – não tem a intenção de prejudicar mas não tem como segurar um revisão de rating. Provável que saia ainda hoje. Mas vão voltar para os comitês e discutir o pedido de tempo", diz a mensagem.
No dia 13, a S&P faz um primeiro rebaixamento da Americanas para B, e a Fitch desce para CC. A Moody's faz seu primeiro corte só no dia 16, para Caa3, quando a S&P, então, reduz para D —equivalente a situação de default (calote)— mencionando em seu relatório a expectativa da recuperação judicial, que sairia alguns dias depois. No dia 17, a Fitch desce para C, e só chega ao D no dia 19. A Moody's também corta novamente, para Ca.
Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que o comportamento da Americanas relatado nas mensagens de Fabiana Oliver foi inapropriado porque sinaliza pressão da empresa sobre a independência das agências de rating. Um pedido de tempo, se atendido, esconderia do mercado a verdadeira avaliação que caberia à varejista no momento.
Para Aurélio Valporto, presidente da Abradin (Associação Brasileira de Investidores), a manutenção de um rating superior ao que deveria ser aplicado desorienta os investidores, levando muitos a comprarem, ou deixarem de vender, ações ou debêntures. "Um rating propositadamente inadequado é uma forma de manipular o mercado e de induzir investidores ao erro", diz Valporto.
Em outro trecho das mensagens trocadas pelo grupo da Americanas no WhatsApp, ainda no dia 12, Fábio Abrate, ex-diretor financeiro da varejista, começa a pedir informações aos outros membros do grupo sobre como estava o diálogo com as agências. Na mensagem, ele diz que precisa antecipar medidas relacionadas à proteção de títulos de dívida no caso de uma redução das notas de crédito da varejista.
"Preciso de visibilidade de como foi a conversa com o rating. Não podemos ser surpreendidos com um downgrade. Temos que ter tempo hábil, em isso acontecendo, de compor com os bancos as margens necessárias para os hedges [proteções] do bonds [títulos de dívida]", diz a mensagem.
Na manhã seguinte, Oliver avisa que teria reuniões com as agências S&P e Moody’s. Abrate, então, pergunta se havia "alguma orientação nova em relação ao discurso". Oliver lhe responde: "Para a gente ser um pouco duro com as agências de rating". Em outra mensagem, ela prossegue: "Podem ser responsáveis pelo cross default [calote cruzado]". E completa: "Felipe havia comentado isso com a fitch". Abrate responde: "Ok. Faz todo sentido".
Não fica claro de quem viria tal orientação. Questionada pela reportagem, a Americanas não respondeu de quem seria a instrução. Naquele momento, Miguel Gutierrez já havia deixado o cargo de CEO e estava fora da companhia desde o fim de dezembro.
Procurada pela Folha, a S&P disse, em nota, que não pode comentar questões relacionadas a conversas com avaliados. Também procuradas pela reportagem, a Fitch não respondeu, e a Moody's disse que "por definição contratual, não comenta seu relacionamento com clientes".
A Americanas não quis comentar as mensagens de seus executivos sobre as agências de rating. Em nota, a varejista disse apenas que "segue contribuindo com todas as investigações conduzidas pelas autoridades competentes e que aguarda o desfecho do caso para responsabilizar todos os envolvidos".
Pressão por tempo sobre agência de rating é indevida, dizem especialistas
A tentativa de postergar um rebaixamento é inadequada, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.
A avaliação de Alexandre Di Miceli, especialista em governança corporativa da consultoria Virtuous Company, é a de que, se houve o pedido de tempo citado pela diretora de RI no grupo de WhatsApp, as mensagens são um atestado de como o relacionamento das agências de rating com as empresas sobre as quais elas devem emitir uma opinião independente não mudou nada desde a crise financeira de 2008.
A crise global que estourou há cerca de 15 anos deixou as agências de rating na berlinda por oferecer notas otimistas demais a papéis de crédito imobiliário subprime, de segunda linha.
Miceli alerta para o risco de que a relação comercial comprometa a independência na definição de notas das empresas, porque quem paga pelo serviço são as companhias. "Há um processo de negociação que não deveria existir por definição. E não só de negociação, como muitas vezes de pressão e com aspectos comerciais, inclusive", diz Miceli.
Para Jonathan Mazon, sócio associado do Ayres Ribeiro Advogados, algum nível de relacionamento e negociação é aceitável, mas o grau de pressão tem limites e não pode prejudicar a imparcialidade da agência de rating.
"A empresa responsável vai querer que a agência reflita com os melhores olhos possíveis. É natural. Vai fazer uma gestão ativa, apresentar documentos, e é normal. O que não é normal é uma agência aceitar ser influenciada por coisas subjetivas. Se ela está convencida, pelos manuais dela, de que corresponde a uma nota melhor, ela tem de ter independência para dar essa nota. Ou se avaliar que a empresa tem que cair de patamar, ela tem de fazer isso também. Não pode ter medo de perder o cliente", diz.
O pedido de tempo, por sua vez, é indevido, segundo ele. Na hipótese de as condições para o rebaixamento estarem concretizadas, a agência não pode segurar a informação, impedindo o conhecimento do mercado. "Se o rating é esse agora, vai publicar agora. A obrigação da agência de rating é essa", diz Mazon.
Para Aurélio Valporto, da Abradin, o caso chama a atenção por causa do histórico de falhas cometidas pelas agências de rating.
"Falharam na crise da Ásia e, uma década depois, na do subprime. Saíram desmoralizadas desses eventos, mas seus ratings ainda são parâmetro para investidores institucionais e para a rolagem de títulos de dívida junto a bancos. Além disso, o rebaixamento pode ser gatilho para disparar covenants [obrigações aplicadas a tomadores de créditos]. No caso, penso que a S&P deveria ter reduzido o rating em dose maior. Fica a impressão que cedeu à pressão de diretores criminosos então na empresa", diz.
Valporto afirma que, se isso for comprovado, a agência pode ser responsabilizada de forma solidária por prejuízos causados aos investidores.
Publicado na Folha de S.Paulo.